Conto de Natal para o ano todo
Osvaldo Molles
Era uma avenida na paisagem dos Evangelhos, bem na esquina do Novo Testamento. E apareceu
um camelo cor de avelã, servindo coquetel nas tâmaras dos olhos. Na obstinada giba, uma
triste cópia da pirâmide. E o focinho crestado pela iluminação da ribalta sem aplausos
do deserto, começou a movimentar-se. E disse :
Nada de meu tinha para dar ao Menino nascido em Belém. Então transportei os Magos
que seguiam o caminho da Estrela. Dei meu fôlego ao Menino.
Veio um boi. Um boi que segundo o Dicionário de Caldas Aulete "serve principalmente
para trabalhos de campo e para alimentação do homem". Depois disso, que dizer sobre
aquele boi que se casou com a escravidão e que trazia, no focinho, a .aliança do
melancólico conúbio? E o boi disse:
O frio da Noite Santa era tão áspero que entrei na manjedoura para me aquecer.
Mas vi lá um Menino com frio e sua mãe e seu pai... e não pensei mais em mim. Aqueci-O
com o que eu tinha de meu: meu pobre alento.
Veio uma cabra montesa, rústica como uma mulher livre do campo. Vinha mascando liberdade
entre os queixos bravios. E falou pouco:
Eu lhe dei do leite de meu filho.
Veio, depois, uma ovelha, macia como uma reza de criança. No perfil trácio trazia o
desenho da educação sem humildade. Sua cabeça baixa tinha a altivez dos que meditam. E
disse :
Nada lhe podia dar e me deitei aconchegada ao Menino, para aquecê-lo na noite
álgida. Dei-lhe muito pouco: dei-lhe apenas meu calor.
Veio um jumento sisudo e muito percorrido., desses que já viram quase tudo e que já não
querem ver mais nada. Um jumento muito velho e usado que conhece muito bem a
História:
Quando o rei Herodes mandou decapitar crianças, eu O levei na fuga para o Egito.
Veio o peixe e disse :
- Eu saltei para o barco de Pedro. Eu lhe dei a fé.
Veio o grão de trigo e falou:
Eu me multipliquei quando Ele m'o pediu. Dei-lhe a ceia.
Veio a água ingênua e disse :
Eu me transformei em vinho. Dei-lhe meu sangue.
E veio o homem. O homem sábio o único entre os animais que possui o segredo da
Eternidade. O homem que é rei da Criação e proprietário do livre arbítrio. E o homem
disse:
Eu lhe dei a cruz.
Osvaldo Molles nasceu em Santos (SP) e, aos 16 anos de idade, iniciou sua
carreira no jornalismo, trabalhando na redação do Diário Nacional e, em
seguida, no São Paulo Jornal e no Correio Paulistano. Viajou pelo
interior do Brasil escrevendo reportagens sobre os nordestinos. Fixou residência em
Salvador (BA), ocasião em que juntou ao grupo fundador de O Estado da Bahia.
De volta a São Paulo (SP), participou do lançamento da Rádio Tupi, iniciando sua
carreira de grande sucesso na radiofonia nacional, que continuou crescente nas rádios
Bandeirantes e Record. Entre suas produções, podemos citar: História das
Malocas, O crime não compensa e a História da literatura
brasileira, levada ao ar durante dois anos consecutivos e que contou com a
colaboração de Oswald de Andrade e Sérgio Milliet, dentre outros. Na TV Record ,
produziu Gente que fala sozinho e outros sucessos, tendo sido agraciado, por
onze anos consecutivos, com o Prêmio Roquete Pinto, além dos Prêmios Tupiniquim (4
vezes), Paulo Machado de Carvalho (melhor programador de 1959) , tendo sido
condecorado com a Medalha de Ouro do Mérito Radiofônico. Com o roteiro do filme
Simão, o caolho, obteve o Prêmio Governador do Estado de São Paulo e o
Prêmio Saci. Poeta, contista e romancista, conquistou o Prêmio Castro Alves e o Prêmio
Cidade do Rio de Janeiro, tendo suas crônicas publicadas nos jornais paulistanos O
Tempo, Folha de São Paulo e Diário da Noite e na revista
Manchete. Alguns críticos diziam ser ele o sucessor, na literatura paulista,
de Antônio de Alcântara Machado.
Texto extraído do livro Piquenique Classe C, Boa Leitura Editora São
Paulo, sem data, pág. 345.
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