O fim é lindo
Fabrício Carpinejar
Minha casa é estranhamente regulada. Quando uma lâmpada queima, as outras vão junto. É
um boicote que aumenta em minutos para testar a paciência. O gás da cozinha falta bem no
momento da janta, e logo de madrugada, com o objetivo de me constranger ao telefone com
uma lista infindável de entregadores. Se o computador estraga, o chuveiro também e o
microondas sofre problemas de circuito. Confio que os aparelhos se imitam e conversam
entre si. Devem reivindicar melhores condições de trabalho e uso, cobrar insalubridade,
ou estão cansados das extensões e da sobrecarga indevidas. O certo é que minha casa é
grevista. Insurgente. Nunca acontece de algo quebrar isoladamente.
Cheguei a minha residência depois de uma série de viagens. E mal acendi a luz, puf, puf,
puf. Meu dedo estalou em cada interruptor. Teve até choque. Foi patético, para não
dizer desanimador. Corredores mexendo as sombras, as paredes escorrendo a cegueira.
Mas, um pouco antes de explodirem, as lâmpadas aumentaram sua fosforescência. Puxaram
todo o resto de força para refulgirem a extinção. Estenderam seus aros como nunca
antes, com a potência de um refletor.
O mesmo ocorreu com o gás de cozinha, a chama das bocas subiu com perigosa curiosidade.
Poderia ouvir o fogo gemer. Ele escurecia as bordas das panelas com sua assinatura. Quase
formava os dedos de uma mão.
Conclui que o fim é lindo.
Assim como as luzes da casa e do fogão, o amor perto do desastre não se economiza. Não
mais se contém. É desesperadamente transparente.
Um casal diante do fim terá a grande noite de sua vida por não prever uma próxima.
Sairá do esconderijo porque não se vê mais seguro. Mostrará do que é capaz. Queimará
o que guardou, não fará mais nenhum jogo, esquecerá a sedução e os conselhos dos
amigos. Mais intensidade do que intenção.
É o escândalo da verdade. Tímidos se transformam em terroristas, calmos ficam
enervados, pacientes se portam como histéricos. Por um instante, não há medo de fazer
as propostas mais desvairadas, confessar palavras reprimidas, estender os olhos como um
lençol limpo.
O fim é lindo. Do crepúsculo, de uma vela, de uma chuva. O fim é esperançoso,
exigente. Pancadas de beleza. O som e o sol pulam como um suicida ao avesso para dentro da
vida.
Fabrício (Carpi Nejar) Carpinejar nasceu em Caxias do Sul
RS, em 23 de outubro de 1972, filho do poeta Carlos Nejar. É mestre em Literatura
Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Livros publicados:
- As solas do sol
- Cinco Marias
- Como no céu / Livro de visitas
- O amor esquece de começar
- 30 segundos
- Meu filho, minha filha
- Um terno de pássaros ao sul
- Porto Alegre e o dia em que a cidade fugiu de casa - Ilustrações de Eduardo Nasi
- Filhote de Cruz Credo
- Terceira sede
- Biografia de uma árvore
- Caixa de sapatos - Antologia
- Canalha!
Foi agraciado com os seguintes prêmios:
- Prêmio Fernando Pessoa, da União Brasileira de Escritores (1998)
- Prêmio Destaque Literário da 46º Feira do Livro de Porto Alegre (2000)
- Prêmio Açorianos de Literatura (2001)
- Prêmio Marengo DOro Itália (2001)
- Prêmio Cecília Meireles, da União Brasileira de Escritores (2002)
- Prêmio Açorianos de Literatura (2002)
- Prêmio Nacional Olavo Bilac, da Academia Brasileira de Letras (2003)
O poema acima foi extraído do livro "Canalha!", Ed. Bertrand Brasil - Rio de
Janeiro, 2008, pág. 314.
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